sábado, 18 de julho de 2009

Escravatura democrática

Gostaria de brindar os amigos com o texto a seguir, publicado na edição de 19/07/2009 do Jornal Zero Hora de Porto Alegre, escrito pelo jornalista Marcelo Rech:

Nos idos de 1977, na antevéspera da abertura política, Pelé levantou contra si um tsunami de ira ao afirmar, durante uma homenagem na Câmara dos Deputados, que os brasileiros não sabiam votar. Logo depois, Pelé corrigiu sua declaração, explicando que o brasileiro deveria votar com mais seriedade, mas era tarde: a oposição ao regime identificou no ídolo dos gramados um inimigo do voto direto em todos os níveis, então um clamor do Brasil democrático. Pelé calou-se, estudantes saíram às ruas para enfrentar cassetetes e gás lacrimogênio, sindicalistas (entre eles Lula) foram presos por fazer greve, intelectuais se uniram aos liberais e arrancaram a anistia, o fim da censura e a legalização de partidos clandestinos.
Em 1979, acreditávamos todos (ok, quase todos os que queriam a abertura) que Pelé era um lambe-coturnos do regime e que eleições livres em todos os níveis libertariam os brasileiros dos grilhões da ignorância democrática, da manipulação política e do estado geral de indigência terceiro-mundista. Ao entrarmos no estado de direito, cruzaríamos o umbral do nirvana político. Eleitos democraticamente, os políticos trabalhariam para e pelo povo. Fiscalizados de perto pelos eleitores, congressistas, vereadores e governantes deixariam no passado de sombras os vestígios da roubalheira e dos favorecimentos.
Trinta anos depois, em meio a um vale-tudo no qual políticos mandam diariamente sinais de banana para eleitores anestesiados, é preciso admitir que Pelé só se equivocou por não ter profetizado que os brasileiros não apenas não sabiam votar, como teriam grande dificuldade de aprendizado. São brasileiros os que elegeram Collor – e o reelegeram para o Senado e, com discreto apoio de Lula, provavelmente vão reentronizá-lo no governo de Alagoas. São brasileiros que, sem dar atenção às evidências, brindam com mandato após mandato renans, barbalhos e sarneys ou que identificam no alojamento na Capital oferecido à tia do vizinho a mais relevante contribuição possível de um político. Mas somos nós, brasileiros de uma elite bem informada e com acesso a plano de saúde, que, depois de quase três décadas sem a desculpa da falta de eleições, não logramos nenhum avanço significativo desde o início do estado de direito e nos mostramos incapazes de demonstrar na prática a beleza e o valor de uma democracia de verdade.
Onde erramos? Arrisco dizer que boa parte da culpa reside na manutenção de duas excrescências do regime militar: o voto obrigatório e o horário eleitoral gratuito. Abdicamos da democracia participativa para conviver mansamente com a democracia compulsória. Querendo ou não querendo, você será obrigado a votar. Querendo ou não querendo, você será compelido a engolir, em todos os meios de comunicação e ao mesmo tempo, o que eles querem que você veja e ouça. É o estado de direito autoritário, uma singularidade brasileira feita sob medida para manter eleitos os eleitos e eleger aqueles que não precisam se esforçar muito para serem reconhecidos.
Acabando-se com o voto obrigatório, os políticos terão não só de nos convencer que são os melhores para o cargo, mas que sua atividade como um todo merece confiança. Eles terão de nos arrebatar com trabalho e desprendimento, e não levar de presente cestas de votos porque “é o mais bonitinho” ou “porque eu tinha de votar em alguém mesmo”. Se não são eliminados, os feudos e os rebanhos sofreriam um duro golpe, como aliás, começa a ocorrer por rebelião social: em certas eleições, 20% dos eleitores já ignoram a obrigatoriedade ou votam nulo.
Acabando-se com o horário eleitoral gratuito obrigatório, zé fini para a moleza de aparecer sem esforço. Os muito bons terão visibilidade durante todo o mandato. O novatos vão se esmerar ainda mais para levar olho no olho sua mensagem e convencer o eleitorado de que merecem um lugar ao sol. Terminam os truques de vídeo e os milhões entregues nas sombras aos marketeiros. Mas não é justo se liquidar simplesmente com a propaganda eleitoral. Sem trucagens e megaproduções, ela deveria ser mantida 24 horas por dia durante os três meses que antecedem a eleição nas TVs Câmara e Senado da vida. Quem quiser conhecer as propostas e os candidatos, assiste aos canais. Aos demais, decreta-se o fim da escravatura democrática. Na prática, aliás, hoje o horário só é obrigatório para as classes mais pobres. Quem tem TV a cabo pode passar a campanha sem topar com o rosto de um candidato. Mais um fato de discriminação para que políticos de segunda linha arregimentem seus rebanhos.
É simples a mudança? Tenha em conta o seguinte. Em qualquer parte do mundo, a mente política reage a dois instintos: em primeiro lugar, o da sobrevivência no mandato e, depois, o da perspectiva de reeleição ou eleição a outro cargo. Tudo o que representar ameaça será repelido pelos instintos. É da natureza humana: ninguém é a favor de nada que ameace sua sobrevivência. É por isso que não houve e nem haverá alteração nas práticas eleitorais. Então, a única forma decente, rápida e indolor de se fazer estas e outras reformas políticas, e finalmente se lançar as bases para a modernidade democrática, é se eleger uma miniconstituinte, paralela ao Congresso, com mandato de seis meses. Mas esta já é uma outra conversa.

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